Parte 2 (final)
A
segunda geração do Democrata surgiu em fins de 1967.
Agora
ele seria ofertado ao mercado como um carro de luxo, preservando a concepção do
popular que não foi (nem seria) projetado. O porta-malas ficaria na dianteira e
o motor, na traseira. A estabilidade não deixava a desejar e a suspensão
respondia bem – era independente nas quatro rodas.
Ele
media 4,68m de comprimento, 1,72m de largura e 1,39m de altura (era do porte de
um Simca Chambord) mas, graças à carroceria em fibra-de-vidro, pesava apenas
1.150 Kg. As bitolas dianteira e traseira mediam 1,39m e a distância livre do
solo era de 21cm. O elegante automóvel podia transportar até 5 passageiros.
A
grade dianteira era apenas um adorno cromado com frisos paralelos horizontais,
já que o motor era traseiro. Os faróis eram retangulares, a linha de cintura
baixa e as janelas amplas com perfil diferenciado nas versões com 2 portas (sem
coluna central – o vidro lateral traseiro desceria todo e ficaria embutido no
para-lama, como no Corcel Cupê lançado poucos anos depois) e com 4 portas.
Abaixo,
o Democrata 2 portas (o verde tinha moldura de faróis diferentes) e os que
circularam no Rio de Janeiro e em outras cidades:
A
exemplo do VW Fusca, o motor ficava na traseira, mas era refrigerado a água e
bem moderno.
A tampa traseira, que recobria o motor, tinha um rebaixo curvo na
extremidade para captar mais ar (o radiador ficava na extremidade traseira do
carro).
Os
tradicionais motores em "V" tinham os dutos de entrada voltados para
o centro do "V" e os de saída para o lado externo do motor, mas no
Democrata era o inverso.
Esse motor – semelhante aos usados nos Alfa Romeo da
época – tinha 2.500cc, 6 cilindros em “V”, bloco e cabeçote em alumínio,
alimentado por 2 carburadores Solex C40 – um requinte para a época – e o câmbio
era manual de 4 velocidades. Ele produzia saudáveis 120 cavalos a 4.500 rpm, números
impressionantes para a época. Era a mais elevada potência dos motores em
produção no Brasil. Compare: 95 HP no FNM 2000, 110 HP no Aero Willys 2600 e 112
HP nos Simca Rallye e Presidence. O Democrata ia da imobilidade aos 100 km/h em
apenas 10 segundos e a leveza da carroceria ajudaria o protótipo a alcançar a
velocidade máxima de 170 km/h. O Democrata seria o mais veloz carro brasileiro
da época, pois o FNM 2000 JK chegava
a 155 km/h. Segundo a
IBAP, o consumo médio era de 7,5 km/l e o sistema elétrico era de 12 volts, com
alternador.
Ao
contrário dos sedans da época, os bancos dianteiros eram individuais e
reclináveis, com um console ao centro onde ficava a alavanca do câmbio de 4
marchas. O assoalho era acarpetado. O volante de 3 raios combinava com o painel
sóbrio, a direção hidráulica e o painel revestido em madeira (jacarandá). O
carro também viria, de fábrica, com rádio AM!
Os
freios eram grandes e a tambor (os freios a disco ainda não eram comuns por
aqui – surgiu com o DKW Fissore, em 1966). A caixa de direção ficava atrás do
eixo dianteiro, uma precaução quanto à segurança devido à menor possibilidade
de invasão do habitáculo pelo volante em caso de colisão frontal.
Outro
episódio infeliz ocorreu quando o Governo Federal colocou à venda a estatal
Fábrica Nacional de Motores – FNM. A IBAP candidatou-se a comprá-la com vistas
a antecipar a produção do Democrata, e consta que “a diretoria da FNM teria
demonstrado satisfação com a possibilidade de a empresa ser absorvida por outra
montadora nacional”. Representantes da FNM chegaram a conhecer as instalações
da fábrica Presidente e lá tiveram contato com o motor desenvolvido para o
veículo. A IBAP já possuía todos os direitos sobre o motor e demais partes
mecânicas, bem como as plantas necessárias para a produção em escala. A IBAP
teria contatado os associados e com eles acertada a compra da FNM, oferecendo
em garantia o terreno da IBAP em São Bernardo do Campo/SP. Durante as
negociações de venda da FNM, a Polícia Federal (no auge da ditadura militar)
invadiu - com ampla cobertura da mídia - as residências e o escritório da IBAP,
apreendeu livros contábeis, extratos de contas bancárias e todos os projetos e
documentação da IBAP, cujo escritório ficava na Avenida Ipiranga, e nas
residências dos diretores da empresa. Após o exame dos papéis não se constatou
nenhuma irregularidade na empresa, mas esse evento foi usado pelo Ministério da
Indústria e Comércio para recusar a proposta da IBAP, sem maiores explicações.
Ainda assim, contra tudo e contra “forças ocultas” a IBAP tentou participar da
concorrência pelo cartório do Registro de Títulos e Documentos. Houve nova
recusa e, desta vez, o Ministério alegou que “faltava respaldo financeiro e
idoneidade técnica à IBAP”... No fim, a FNM foi praticamente “doada” à Fiat em
1968 por um valor irrisório, abaixo do que fora proposto pela IBAP.
Nelson
Fernandes ficou sabendo pelo vice-almirante Antonio Maria Nunes de Sousa – o
então presidente da SUDEP – que “se não desistisse da IBAP, diretores da
empresa e seus familiares sofreriam represálias”. Mais explícito que isso, só
uma bala na testa. Esse argumento foi mais que suficiente para dissolver a
sociedade, homologada por sentença da 1ª Vara da Justiça Federal de São Paulo,
no processo nº 115855.
Uma
“inspeção-relâmpago” do Banco Central resultou em um “laudo” atestando a
"inexistência de itens para a produção ou mesmo montagem de quaisquer dos
componentes do veículo motorizado”. Além disso, o laudo teria verificado a
"inexistência de contratos com quaisquer das fábricas de veículos ou autopeças,
no Brasil ou no exterior, bem como a inexistência de técnicos necessários à
elaboração de projetos e à fabricação de automóveis”. O Banco Central ainda acusou a IBAP de
“coleta irregular de poupança popular sob falsa alegação de construir uma
fábrica de automóveis”. As acusações pareciam infundadas pois havia uma fábrica
de automóveis legalmente constituída dois anos antes, com algumas unidades
prontas e mais cinquenta sendo produzidas. Isso sem contar que a empresa foi
aprovada sem restrições por inspeções anteriores da Polícia Técnica e do Banco
do Brasil. A conclusão óbvia: os diretores da IBAP foram condenados. O golpe
final foi a proibição, pelo Banco Central, da venda das ações.
Todo
o patrimônio da empresa foi confiscado pela justiça e somente 20 anos mais
tarde reconheceu-se como “indevida” a intervenção do Banco Central... e que “o
empreendimento era seguro e tinha garantias”.
A
“demora da Justiça” em decidir a causa levou a IBAP à ruína.
O
Democrata foi sepultado em 1968, com apenas 5 unidades fabricadas.
Em
1988, uma revista especializada em automóveis (Oficina Mecânica) teve acesso ao
que restava da fábrica da IBAP e o que viu foi aterrador: coberto com grossa
camada de poeira, o carro-molde de plástico e madeira utilizado para moldagem
das carrocerias, alguns carros montados, dezenas de carrocerias (uma delas
ainda no molde), alguns motores na bancada. Um
Democrata 4 portas e algumas carrocerias estavam enterrados após o desabamento
de um galpão. As
instalações da IBAP só foram liberadas no começo dos anos 90. Um lote de 500
motores, importado da Itália, foi vendido como “sucata”.
Enquanto
escrevia um livro sobre a indústria automobilística brasileira, o jornalista
Roberto Nasser – curador da Fundação Memória do Transporte/DF – descobrira 2
unidades do Democrata nas ruínas do que fora a fábrica, em São Bernardo do
Campo/SP. Roberto Nasser conseguiu localizar Nelson Fernandes (fundador da
IBAP) e incentivou-o a escrever, no tal “livro” o capítulo referente à IBAP.
Nelson
Fernandes contatou os irmãos José Carlos e José Luiz Finardi, donos do CENTRO
AUTOMOTIVO FINARDI, os mesmos que eram cotistas da IBAP e que em 1990
adquiriram, por 30 mil dólares, os 30 DEMOCRATAs remanescentes. Nelson
encorajou-os a restaurar um dos exemplares, com a ajuda do especialista
Donizete Costa Longa. Com determinação e euforia, o exemplar restaurado foi exposto
no III Encontro Brasileiro de Veículos Antigos, fazendo parte das comemorações
do 40° aniversário de Brasília e, mais tarde, no Encontro de Antigos de Águas
Lindóia/SP.
O
mais revoltante é que até hoje o Brasil não possui uma indústria automotiva
nacional, principalmente depois que se conhece parte da história que conduziu
ao fracasso da IBAP e do carro nacional DEMOCRATA.
A
Gurgel também tentou produzir um carro verdadeiramente popular, e foi
boicotada.
Os
chineses – que possuem algumas dezenas de montadoras nacionais (surgidas a
partir de associação com multinacionais e com transferência de tecnologia) -
ficam impressionados com o fato de que até hoje não possuímos uma indústria
nacional. E continuam sem entender porque continuamos a não ter e a não
batalhar por uma. Afinal, a indústria automobilística tem um peso muito grande
em nosso desenvolvimento.
Observem
que países como Alemanha, Itália, Correia do Sul, China e Índia possuem
empresas automobilísticas próprias. A cultura nacional adotou a indústria
internacional como sendo “nossa” – isso desde o lançamento do primeiro carro
nacional, a perua DKW, pela “brasileira” Vemag – Veículos e Máquinas Agrícolas,
que fabricava, sob licença, veículos da alemã DKW. E o brasileiro comprava o
carro como sendo um “legítimo produto nacional”... Só que os lucros da Willys,
Ford, GM etc eram enviados às suas matrizes, no exterior.
Anos
depois do fim da II Guerra Mundial países (como a França) perceberam que suas
fábricas nacionais corriam o risco de falir e que dependeriam da indústria
estrangeira (para onde drenariam parte da riqueza produzida no país). Sem
hesitação, trataram de proteger a
Renault, estatizando-a.
E
o Brasil ainda tem a coragem de, passado meio século de implantação da
indústria automobilística, sequer produzir um carro nacional.
Se
você gostou do assunto, assista a este filme:
https://www.youtube.com/watch?v=BBZ5YEmBNlU